A Cultura das Quebradas É Patrimônio: A Luta Pelo Reconhecimento da Arte Periférica como Legítima, Viva e Transformadora
- Observatório das Baixadas
- 11 de jun.
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ARTIGO POR Beatriz Lopes
[COMUNIDADE]

A arte da rua é resistência, mas continua sendo deslegitimada quando nasce nas periferias. Quando surge da quebrada, é chamada de bagunça, sujeira ou vandalismo. Mas, quando é reproduzida por pessoas brancas, famosas, com espaço em galerias e apoio de instituições, aí sim ganha o selo de “arte de verdade”. Isso tem nome: racismo estrutural e elitismo cultural.
As instituições culturais e o sistema de justiça no Brasil fazem parte desse apagamento. Funcionam como peneiras sociais, reconhecendo e valorizando apenas aquilo que vem da branquitude, da burguesia e do universo acadêmico. Só se reconhece como arte aquilo que se encaixa em um modelo distante da realidade das quebradas. Tudo que escapa desse padrão é ignorado, censurado ou criminalizado.
Esse apagamento também se expressa de forma direta nas ruas, ao ocupar espaços públicos com manifestações culturais independentes, é comum a chegada de viaturas, com ações coercitivas por parte da polícia — especialmente contra pessoas negras e periféricas. Em vez de apoio, o que se presencia é truculência, desrespeito e intimidação. A presença artística nas ruas, em vez de ser valorizada, é tratada como ameaça. No lugar de incentivo, o retorno é a violência e suas consequências.
A juventude periférica é constantemente silenciada. Em vez de projetos para o futuro, o que o Estado oferece é repressão, violência e abandono. Não há espaço, nem incentivo. O que existe é criminalização, cadeia e morte. O Brasil ainda vive um sistema de castas, onde quem nasce na periferia precisa lutar dez vezes mais para conseguir o mínimo de reconhecimento.
A cultura negra, indígena e periférica sempre foi apropriada. Desde antes do Brasil ser Brasil, tudo que é inventado pelo povo preto e periférico é roubado, embranquecido e vendido como se fosse criação alheia. Dança, música, arte, saberes — tudo isso é arrancado das nossas mãos e reempacotado como produto, sem dar o devido crédito a quem realmente criou.
A marginalização da arte periférica se perpetua. O mesmo graffiti, o mesmo beat, a mesma dança mudam de valor dependendo de quem faz. Quando vem da quebrada, chamam de “vandalismo” ou dizem que é “inferior”. Mas, nas mãos de brancos privilegiados, vira exposição, matéria de jornal, prêmio.
Essa lógica excludente é reforçada tanto pelas instituições culturais quanto pelo próprio sistema de justiça. Só é considerado relevante o que se encaixa no padrão da branquitude, do academicismo e da burguesia. Trata-se de um filtro que exclui a cultura feita nas bordas — por quem realmente vive e transforma a realidade.
A falta de políticas públicas voltadas à circulação profissional de artistas urbanos e periféricos resulta na precarização da manutenção cultural. Faltam espaços de acolhimento, diálogo e incentivo. A burocratização dos equipamentos públicos distancia os movimentos independentes, especialmente aqueles ligados ao Hip Hop e ao Funk.
Essa marginalização também aumenta a competitividade entre agentes culturais e artistas, estabelecendo quem é “aceito” como relevante e quem segue invisível. E os grupos mais excluídos são justamente os que carregam as lutas mais profundas: juventude periférica, mulheres negras, pessoas LGBTQIAPN+. Isso gera desmotivação, ausência de perspectivas profissionais, invisibilidade histórica, falta de espaços de atuação, sobrecarga de trabalho não remunerado, sofrimento mental — e, muitas vezes, morte.
A cultura urbana e periférica é, para muitas crianças e jovens, uma porta de entrada lúdica e acessível para a criação, desenvolvimento pessoal e coletivo. No entanto, para muitos adultos, essa escolha ainda causa receio, por parecer um caminho sem garantias ou reconhecimento. Embora hoje existam artistas que conseguiram subverter as armadilhas do sistema, isso ainda está longe de ser a regra. A maioria dos artistas periféricos precisa ter mais de uma profissão para conseguir investir em sua arte.
Além disso, dependendo da região do Brasil, esse “funil de oportunidades” se torna ainda mais estreito. Os grandes investimentos se concentram nos eixos Sul e Sudeste, enquanto o Norte, Nordeste e parte do Centro-Oeste ficam à margem — esquecidos até que seja conveniente dar visibilidade.
Este é um grito de denúncia — e também um chamado à luta. Trata-se de justiça cultural, de ocupar espaços com nossas vozes, nossas cores e nossas ideias. Trata-se de não aceitar mais que apenas os de “cima” decidam o que vale ou não como cultura.
A luta por justiça cultural é, portanto, a luta por acesso à formação, ao conhecimento, aos espaços de poder. Precisamos de mais pessoas conscientes ocupando esses lugares — gente que reconhece o valor da cultura popular, da arte da quebrada, da criação que nasce da vivência. É hora de reconhecer quem constrói, todos os dias, a cultura deste país com resistência, criatividade e coragem.
E para as mulheres, essa realidade é ainda mais atravessada. Além da exclusão, enfrentamos machismo, assédio e silenciamento dentro e fora da arte. Mas seguimos firmes: criando, ocupando e transformando. Porque nossa voz também é cultura — e não vai mais ser silenciada.
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